A infância no mato…
“Até aos 12 anos vivi no mato, onde o meu pai tinha os negócios: uma loja de comércio com os nativos, agricultura e pecuária. Ali não havia recursos nenhuns e a vila mais próxima era a 10 quilómetros, onde havia quase de tudo. Por isso não aprendi a ler nem escrever.”
A vida familiar…
“Além de ter convivido com madrastas de raça negra, que na altura, nada sabiam para me poderem transmitir, meu pai e uma irmã, esta, apenas com a 3º classe, tentaram ensinar-me em casa, mas eu não aprendia nada, dado o grau de atraso, do ambiente em que vivia, pois em casa nem sequer havia um rádio para ouvir música ou o noticiário e, sem outros incentivos, era viver num mundo desconhecido.”
“Como não era todos os dias que me chamavam para pegar nos livros a fim de estudar, eu ia ter com os meus amigos que eram nativos e como não tínhamos brinquedos, as nossas brincadeiras consistiam em fazermos corridas, brincar com arcos e quando chovia cortávamos troncos de bananeira e íamos para sítios altos e escorregávamos por aí abaixo e fazíamos moinhos com pauzinhos e púnhamos nos regatos, enquanto durasse a água. Assim passávamos a vida, felizes, na ignorância e sem disciplina.”
A escola na vila…
“Aí tive muita dificuldade de adaptação, pois os outros miúdos troçavam de mim, mas pouco a pouco foi superando. O professor mandava os outros alunos ensinar-me e eu, como não aprendia, batiam-me. (…) tive de aprender à força. Finalmente não era só eu. Também lá encontrei alunos que eram mais velhos do que eu e repetentes da primeira classe. Graças a Deus, da escola nunca fugi e depois de aprender a ler e escrever, passei a ter gosto de estudar. Fui-me integrando nas brincadeiras com os outros alunos, jogávamos à bola de meia e já me sentia à vontade.“
(…)
“A quarta classe foi a que gostei mais e como sabia já ler e escrever bem, gostava muito da história de Portugal e de todas as provinciais ultramarinas e também de geografia ciências naturais do corpo humano e de geometria. Nesta classe, quando acabavam as aulas, ficava um grupo de alunos e alunas de pais ricos e daqueles que podiam pagar a aprender a admissão aos liceus. Os outros iam embora mas eu mesmo não podendo pagar deixava-me ficar, punha-me atrás das carteiras encobrindo-me com receio do professor me ralhar e correr comigo, porque era visto como muito mau. Ele apercebeu-se disso, mas nunca me ralhou nem correu comigo. Eu estava sempre com atenção aos seus ensinamentos, chegando mesmo ao ponto de ele fazer uma pergunta aos seus leccionados, começar numa ponta e acabar na outra sem que estes lhe respondessem. Chamou-me e disse-lhes: “querem ver que um aluno da quarta classe me vai responder à pergunta?” Por sorte, e grassas a Deus, respondi correctamente. O professor mandou-me então dar doze palmatoadas a cada um tendo-me calhado aquele que me tinha dado socos na cabeça.”
Um relato delicioso na primeira pessoa que dispensa comentários.
Foram várias as histórias contadas pelo Sr. José. Chegado o final do ano, obteve o seu diploma do 6º ano de escolaridade tendo revelado as competências exigidas para o mesmo. No verão que se seguiu cumpriu um sonho antigo, o de voltar a Angola, a sua terra natal, mas apenas para passar férias, já que é lá que ainda tem parte da família. Agora de volta a Portugal foi convidado pela escola para ingressar no próximo ciclo, dando continuidade aos estudos e terminar o 9º ano. Disse-nos que agora já tem pouca vontade. Talvez os ares de África o tenham conformado com a realização do seu sonho. O que mais o prendia à escola eram as aulas de Inglês e de Informática que era o que ele mais gostava de aprender.
O que ele não sabe é que no fim do dia, aquilo que aprendeu comigo foi uma sombra quando comparado com o que me ensinou a mim. Mas a vida é mesmo assim… Vamos nos ensinando uns aos outros.
Um grande e saudoso abraço ao Sr. José.
Comments
Obrigado por me lembrares o que é ser Professor!
Ás vezes…esqueço-me perante experiências tão diferentes desta relatada por ti no meu dia-a-dia.
Um grande abraço, Amigo!
É verdade amigo. Pena é que estas experiências sejam cada vez mais um achado no nosso contexto escolar. Por isso, quando acontecem são dignas de registo.
1 abraço