Nota de autor: A Birmânia é hoje também conhecida como a Republica da União de Myanmar. Em 1989 a junta militar que governa o país desde então alterou oficialmente a versão inglesa do nome do país para Myanmar, assim como de algumas cidades, como Rangum para Yangon. A renomeação é politicamente controversa, pois grupos birmaneses de oposição ao regime militar, assim como alguns estados ocidentais continuam a empregar o termo “Birmânia”. A língua oficial do país é o Birmanês e o maior grupo étnico da união são os birmaneses. A união europeia e as nações unidas empregam a grafia “Mianmar” e é essa que será empregue ao longo do texto. A exceção no título fica como uma homenagem à história do país que só recentemente abriu as portas ao turismo. Com eleições agendadas para novembro de 2015 ninguém sabe ao certo o que acontecerá depois disso. Já que estamos na região, aproveitamos para espreitar o país, não vá ele voltar a fechar-se.
Yangon (antiga Rangum)
Chegamos a Yangon numa manhã chuvosa. Nesta viagem não vamos sozinhos, levamos alguém muito especial. A Rithya é uma amiga de Phnom Penh que já nos tem acompanhado em outras viagens (ver ” No Reino do Camboja – Ilha Koh Rong”). Do aeroporto seguimos de táxi para o centro da cidade. A viagem leva cerca de uma hora no meio do trânsito intenso mas ordeiro.
A pagoda
O primeiro local que visitamos é um dos ex-libris de Myanmar. A Shwedagon Pagoda é uma das pagodas mais famosas do mundo e carinhosamente apelidada da “Coroa da Birmânia”. Diz-se que os fiéis a Buda tem de vir pelo menos uma vez na vida em peregrinação à Shwedagon, assim como os muçulmanos vão a Mecca. O complexto fica situado num monte a 99 metros de altura e a stupa principal pode ser vista desde toda a cidade. Coberta totalmente a folha de ouro é uma relíquia impressionante e como se isso não bastasse, a coroa no topo é ornamentada com 5,448 diamantes e 2,317 rubis. Para além da stupa principal, no centro do complexo, existem uma miríade de templos e relíquias relacionadas com o budismo e até com o próprio Buda, como fios do seu cabelo. O museu alberga uma exposição de antigos tesouros que complementam a visita.
Deixamos os sapatos à entrada e durante a visita circulamos pelo complexo numa passadeira de borracha à volta da stupa central. Abro aqui um parêntesis para salientar um aspeto curioso. Os sapatos são uma questão séria em Mianmar. Aqui as pessoas ficam mesmo ofendidas se não descalçarmos os sapatos em alguns locais. Noutros países do sudeste asiático que já visitamos também existe o mesmo hábito, mas ninguém está a reparar se estamos descalços ou não. Em Mianmar este foi aliás um dos motivos de grande desavença com os colonos britânicos que se recusavam descalçar para entrar em alguns locais considerados sagrados pelos birmaneses.
Voltemos à pagoda… Como ainda é de manhã cedo a temperatura está agradável mas à medida que a hora avança o sol deixa de ter contemplações e quando saímos da passadeira o chão de mármore ferve. Para visitarmos todas as zonas do complexo temos de sair da passadeira o que se torna quase num ritual de autoflagelo, mas no final vale a pena. A maior parte dos visitantes são locais. Apesar de tudo não se veem muitos turistas. Ao final de algumas horas, terminamos a visita e seguimos viagem.
O mercado
Á saída da pagoda perguntamos aos seguranças qual o autocarro que apanhamos para o Bogyoke Market. Eles a princípio ficam admirados porque normalmente os turistas andam de táxi e a distância até é curta! Como nós não somos turistas, mas sim viajantes, queremos viajar como os locais. Então lá nos explicaram onde apanhar o autocarro e escreveram-nos num mapa o número em birmanês. Para além das letras os números em birmanês também são diferentes da numeração árabe que usamos no ocidente o que dificulta a nossa vida aqui. De qualquer forma lá fomos e no local indicado apanhamos o autocarro facilmente. O bilhete são 200 kiats (0,18$).
O Bogyoke Market (Scott para os locais, não cheguei a perceber porquê…) é o principal mercado de Yangon. Se compararmos com Phnom Penh é uma espécie de Russian market maior e muito mais asseado. Assim que saímos do autocarro no lado oposto do mercado, começa a chover. Corremos pela passagem aérea para o interior do mercado no piso superior. A primeira loja que visitamos é uma galeria de arte contemporânea que tem uns quadros fantásticos alusivos à cultura birmanesa. Como a hora já vai avançada decidimos ir procurar almoço no mercado. Perguntamos nas lojas onde é a zona da comida e lá nos deram indicações. Chegados à área de restauração somos recebidos por umas senhoras aos berros (literalmente) que nos tentam chamar para o seu estabelecimento. A abordagem não é apenas connosco mas com todos os clientes que chegam. Cada uma berra mais alto do que a outra mas para nós o gesto acaba por ter o efeito contrário ao desejado. Saímos dali em passo acelerado antes que nos batessem. Sim porque pareciam estar mesmo arreliadas! Do lado oposto encontramos outros restaurantes mas aqui o ambiente é mais tranquilo. Os rapazes que servem às mesas mostram-nos os menus de forma simpática e acabamos por nos sentar ali para almoçar. Deste lado não há senhoras, talvez seja por isso que o ambiente é mais calmo. Pedimos uns noodles e uma Coca-Cola para aconchegar o estomago, o que é sempre uma boa estratégia quando temos dúvidas sobre a água e a frescura do que estamos prestes a comer. A dose vem bem aviada para nosso espanto! Não estamos habituados a doses tão grandes no Sudeste Asiático. Ao nosso lado um jovem come uma porção de arroz que no Camboja dava para alimentar uma família inteira. A Rithya está estupefacta. Claro que ela não conseguiu acabar a dose dela, mas isso é normal. Ela é uma pessoa que gosta de comer muitas vezes ao dia mas não come muito de cada vez.
Depois do almoço continuamos a visita ao mercado. A Marisa teve de fazer algumas compras da praxe. Afinal por que é que trazemos as senhoras ao mercado se não para fazer compras!? No mercado há de tudo mas nós perdemos mais tempo nas lojas de Longyi os panos tradicionais birmaneses usados como veste. Depois de feitas as compras continuamos o passeio pela cidade.
A baixa
A próxima zona da cidade que visitamos foi a baixa, entre o Bogyoke Market e a Sule Pagoda. São uma serie de ruas paralelas com casas do tempo colonial coloridas. Parece que estamos na India, ou no Bangladesh. De facto há uma grande comunidade de gente proveniente do Bangladesh em Yangoon. Diz-se que nos tempos coloniais, a dada altura, Rangum tinha mais emigrantes do Bangladesh e da India do que birmaneses. Aqui nesta parte da cidade, parece que nada mudou. As ruas no entanto são muito sujas o que certamente não acontecia nesses tempos. Passamos também por uma mesquita o que denota a faceta multicultural desta cidade.
Um pouco mais abaixo do Bogyoke Market na direção do rio de Yangon, formado pela confluência do Pegu e do Myitmaka, que desagua no golfo de Martaban no mar de Adam fica o principal centro rodoviário da cidade. A Sule Pagoda é um templo curioso já que serve de rotunda numa das maiores avenidas da cidade. Dada a sua localização e história tem sido um dos palcos importantes da politica e ideologia recente. A lenda diz que a pagoda guarda um fio de cabelo de Buda que o próprio terá deixado aos mercadores birmaneses. Não chegamos a entrar na pagoda pois queremos visitar outras partes da cidade também. Junto á pagoda fica o edifício da câmara municipal, um edifício desenhado pelo um arquiteto birmanês e uma exemplar da arquitetura local.

Do lado oposto fica o jardim Maha Bandoola onde foi erigido o monumento da independência, um obelisco que comemora a independência birmanesa dos britânicos em 1948. No lado oriental do jardim fica um edifício que tem tanto de belo como de misterioso! A arquitetura britânica em tijolo vermelho e a torre de relógio chamam a atenção. Construído nos finais do séc. XIX é um dos edifícios mais antigos da cidade e já serviu vários propósitos, sede do secretariat, conselho de ministros e mais recentemente o supremo tribunal. O edifício deixou de ser usado em 2006 depois de a capital ser transferida para Naypyidaw no ano anterior. Hoje está completamente abandonado e degradado com vidros partidos nas janelas e toda uma vedação à volta para impedir a entrada. Foi aqui que em julho de 1947 Aung San, o pai da nação moderna e o herói da independência, foi assassinado junto com outros seis ministros.
O rio
Seguimos para a beira-rio. Passamos pelo edifício da alfândega, da autoridade portuária e da polícia, todos eles a lembrarem outros tempos mais gloriosos. O último num estado de degradação impressionante, ainda que em plena atividade. Passamos por cima da movimentada Avenida Strand e vamos até ao terminal de Ferry Pansodan. Não para apanharmos barco, mas simplesmente para apreciarmos o movimento frenético de gente a chegar e a partir, e dos comerciantes à beira do caminho aos gritos para tentarem chamar a atenção dos fregueses. Depois disso voltamos a fazer-nos ao caminho, desta vez seguindo para norte pela rua Pansodan. Paramos em algumas lojas de artesanato pelo caminho e no Harley’s, uma cadeia de fast-food para beber um refresco.
A história
Quando chegamos perto da estação ferroviária central entramos numa livraria. Estou à procura de um livro que conte a história de Mianmar e da sua cultura. Existem algumas obras em Inglês e acabo por comprar uma biografia de uma personagem incontornável na história recente de Mianmar. Aung San Suu Kyi, prémio nobel da paz em 1991 é filha do general Aung San, o fundador do exército birmanês pós-independência e figura incontornável da independência. É a secretária do principal partido da oposição, a liga nacional para a democracia, o único partido que efetivamente ganhou umas eleições em Myanmar em 1990 mas que nunca chegou a governar. Aung San Suu Kyi esteve detida em prisão domiciliária durante quase 15 anos entre 1989 e 2010 com alguns interregnos pelo meio. Ainda assim não deixou de lutar pelo seu país e para muitos birmaneses (a maioria) será sempre uma heroína nacional assim como o seu pai já o tinha sido no tempo pós-colonialismo. A sua história cruza-se com a história da Birmânia moderna, mais tarde Mianmar.
O adeus
Depois da visita ao centro de Yangon está na hora de deixarmos a cidade para nos metermos ao caminho até ao próximo destino. Vamos até ao estádio Anung San de onde apanhamos um táxi para a estação de autocarros na saída norte de Yangon, de onde partem os autocarros para o norte do país. A estação de Aung Mingalar é longe do centro e levamos cerca de 45 minutos para lá chegar. Pelo caminho sempre que paramos nos semáforos o condutor abre a porta e cospe para a estrada num ritual que à partida parece estranho! Depois percebemos que está a mascar uma espécie de tabaco que é muito comum em Mianar. Vê-se muita gente a mascar por aqui. A estação de Aung Mingalar é quase ao pé do aeroporto, junto à autoestrada com o mesmo nome. Como já temos os bilhetes reservados não temos pressa. Esta é só por si uma história que merece ser contada! Quando estava à procura de transporte de Yangon para Bagan fui informado por um contacto aqui em Myanmar de uma amiga em Phnom Penh de que há um website onde se pode comprar os bilhetes diretamente. A mesma pessoa também me avisou que os autocarros noturnos de longo curso enchem rapidamente e por isso é boa ideia comprar os bilhetes atempadamente. Quando fui ver no website já estava tudo esgotado. Procurei outras alternativas mas não há muitas companhias neste trajeto, pelo menos que se consiga reservar online. A outra alternativa é o comboio que demora muito mais tempo e perde-se praticamente um dia. Depois de algum tempo de pesquisa, vi num fórum que alguém tinha contactado a companhia de autocarros diretamente através da página de facebook deles. Achei estranho mas não tinha muito a perder. Mandei uma mesagem no facebook e passado alguns minutos responderam-me. Pediram-me o nome completo e o número dos passaportes para fazerem a reserva. Quando chegasse à estação podia fazer o pagamento e levantar os bilhetes! Simplesmente genial, pensei, nem pedem um depósito, nada… Agora que estou a chegar à estação vamos ver se tudo corre bem. E não é que os bilhetes estão mesmo reservados!!! Fazemos o pagamento e aguardamos pelo autocarro. Que categoria de serviço! Não se deve encontrar isto em muitas partes do mundo.
Ainda temos mais do que uma hora até embarcarmos e por isso decidimos ir dar uma volta pelas redondezas. Não há muito para ver a não ser aglomerados de gente e autocarros, muitos autocarros por todo o lado. Esta estação é muito grande e com muito movimento. Ao lado da estação, porém, encontramos uma pequena pagoda com a sua stupa dourada iluminada na noite escura. É uma pagoda que nem sequer vem no mapa mas é muito agradável, especialmente para descontrair antes de uma viagem de dez horas. Foi a forma perfeita para nos despedirmos de Yangon.
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