janeiro de 2018 |
A história recente desta cidade costeira do Reino Unido está perfeitamente emaranhada com a história do Rock&Roll e dos quatro “lads” que lhe deram toda uma nova dimensão. Todavia, não deixa de ser curioso, que aquele que viria a ficar para a história como o rei do Rock, surgiu do outro lado do oceano, numa terra onde a monarquia há muito tinha sido rejeitada.
Liverpool trouxe ao mundo uma das maiores e mais místicas bandas Rock que se ouviram e a cidade não lhe deixa escapar esse feito, nem por um momento. Prova disso é a nossa chegada ao aeroporto John Lennon, onde recebemos instruções da rent-a-car para esperarmos o shuttle atrás do submarino amarelo!
A história dos Beatles para nós é mesmo isso, uma história que ouvimos contar e que podemos confirmar recorrendo à imensa informação, quer documental, quer discográfica, que existe. Mas para apreciarmos verdadeiramente esta epopeia do Rock, nada melhor do que nos fazermos acompanhar por quem a viveu nos seus tempos de mocidade. E assim chegamos com os nossos pais, que orgulhosamente se autoproclamam como a geração de ouro do séc. XX. Nós, por outro lado, ficamos conhecidos como a geração “rasca”. Estamos no bom caminho, portanto.
Lado A
O primeiro sítio que vamos visitar em Liverpool é o Cavern Club, o pub mais famoso da cidade e provavelmente de toda o Reino Unido, onde os Beatles começaram a tocar e onde atuaram quase por 300 vezes ao longo da sua carreira. Ainda recentemente cá esteve Sir Paul Mccartney, num regresso às origens, para delírio dos fans.
O Cavern é um espaço subterrâneo, tal como o nome sujere, no centro da cidade, na famosa Mathew Street. Para chegarmos ao pub temos de descer vários lances de escada decorados com pósteres e fotografias de várias estrelas do Rock britânico. Não foram apenas os Beatles que aqui tocaram, mas foram eles sem dúvida que deram uma nova visibilidade a este espaço. No interior há música ao vivo e muitas “pint’s”, a bebida tradicional britânica, depois do chá (uma pint não é efetivamente uma bebida, mas sim uma unidade de volume no sistema imperial, que os britânicos usam com frequência. Para eles, no entanto, pouco importa o conteúdo, desde que seja cerveja e cheia até acima).
No famoso palco com a parede ao estilo Piet Mondrian, registam-se os nomes de várias bandas que já por aqui passaram. Entre os vários quadrados e retângulos coloridos, saltam imediatamente à vista os nomes dos Beatles e dos Rolling Stones. O Cavern tem sempre música ao vivo, com vários artistas residentes. Os clientes confraternizam nas várias mesas espalhadas pela sala que é decorada com várias vitrines com instrumentos musicais oferecidos pelos artistas, fotografias e documentos alusivos à história do Cavern. É algo semelhante ao que fazem no Hard Rock Café, mas de uma forma mais genuína. Uma das placas na parede refere que o Beatles tocaram aqui 292 vezes nos anos de 1961, 1962, 1963 da tal década de ouro, como alguns defendem. A última vez que aqui atuaram foi em agosto de 1963.
O Cavern tem também uma pequena zona onde se pode comprar vários “souvenirs” e mercahndising. Essa zona também dá acesso à sala lounge que acaba de abrir. À entrada somos recebidos de um lado por uma escultura dos 4 famosos de Liverpool e do outro, por 4 grandes quadros de estilo iconográfico de cada um dos Beatles.
A sala lounge tem um palco maior onde atuam algumas bandas. Aos sábados à noite há os The Cavern Club Beatles, uma banda residente de tributo aos Beatles. Agora no palco está outro dos artistas residentes que atua apenas com uma guitarra clássica. Começa com Bob Dylan e após a breve incursão no Rock/Folk Norte Americano, regressa ao Reino Unido com Cat Stevens e outros marcos do Rock&Roll mais recentes dos anos 90. A música é boa e o artista recomenda-se. Chama-se Richard Batty e é um dos músicos residentes do Cavern.
De volta à Mathew Street, encontramos a estátua do John Lennon encostado à parede a ver quem passa. E passa por ali muita gente! Seguimos pela rua e passamos no Eric’s live outro dos clubes famosos da cidade. Por cima da porta de entrada, uma estátua da “virgem Maria” segura não um, mas três bebés. Ao lado destes, está outra pequena estátua com um bebé em forma de anjo. Em cima lê-se “Beatle Street”. Por baixo, “Four Lads Who Shook the Wolrd”. É uma obra do escultor Arthur Dooley que facilmente pode passar despercebida devido à altura a que está do chão.
Mais à frente fazemos uma paragem obrigatória na loja dos Beatles, que fica situada numa cave junto à rua. Aqui também está uma escultura com os quatro rapazes por cima da porta que foi a primeira estátua do grupo a ser erigida na cidade no ano de 1984. A obra é do escultor local David Hughes.
Continuamos no trilho das estátuas, agora na Stanley Street, onde encontramos Eleanor Rigby que cedeu o seu nome a um dos êxitos da banda. A música que viria a ficar famosa com a letra “All the lonely people” foi lançada com o álbum Yellow Submarine em 1966. A relação desta senhora com a música permanece um mistério, como podemos ler neste recente artigo da BBC.
Agora seguimos pelas ruas do comércio da baixa de Liverpool até à zona das docas. A Albert Dock é um complexo de edifícios antigos que albergam vários museus, restaurantes e também áreas residenciais. Fechado ao redor de uma pequena marina, tem apenas uma zona de acesso dos barcos ao rio no exterior. É aqui que encontramos o Liverpool Comedy Central, uma famosa sala de stand-up da cidade e o museu The Beatles Story que é o centro de informação mais completo sobre a história da banda. No interior podemos ver inclusivamente os portões originais do Strawberry Field, um orfanato que deu o nome a outro êxito do grupo. No apoio ao museu temos também o fab4 café e a fab4 store, onde se pode tomar algo enquanto se descansa da visita ao museu e comprar as últimas lembranças de mercahndising dos Beatles.
Do outro lado da Albert Dock fica o museu Tate Liverpool. O conceito é semelhante ao Tate London, mas aqui não deixa de ser curioso o facto do museu de arte moderna estar alojado num edifício de armazéns antigos. No interior a simplicidade dos espaços leva os visitantes a focarem-se nas obras expostas. No rés-do-chão encontramos uma exposição temporária intitulada “We are ghosts” de Mary Reid Kelley e Patrick Kelley. Trata-se de uma combinação de vídeo, pintura e poesia para contar histórias surrealistas inspiradas pela história e pela mitologia. São filmes estilizados a preto e branco apresentados em duas telas de espaços diferentes. Os nomes das obras são “In The Body of The Sturgeon” e “This Is Offal” (ver aqui).
No primeiro andar estão as salas dos artistas, onde se destacam várias obras de Roy Lichtenstein, entre as quais “In The Car” de 1963 um dos seus trabalhos mais conhecidos. Para além destes ainda podemos ver outras obras de Picasso, Andy Warhol, Kandinsky, entre outros.
Terminada a visita ao Tate, passamos pelo Museu Marítimo Merseyside, também na Albert Dock e pelo museu de Liverpool, que fica no lado oposto, junto ao memorial da guerra naval. A hora avançada já não permitiu visitar estes dois museus, mas o passeio pelas docas e pela marginal é agradável.
Depois subimos a Victoria Street e antes de regressarmos a casa, fizemos uma paragem no Kaspa’s Desserts para terminar o dia em grande. Este é um estabelecimento não recomendável a diabéticos com uma oferta de gulosices ao estilo Americano. Uma vez que se trata de um país onde a obesidade é “bastante residual” podemos então comer à vontade. Sai um Milkshake de Oreo e um Waffle Red Velvet e outras tantas iguarias saudáveis para cada um de nós. Agora sim, podemos voltar a casa bem aconchegados.
Lado B
Hoje de manhã enquanto tomamos o pequeno-almoço preparado pelo chef Alexandre, contemplamos pela janela da cozinha o tempo pouco convidativo lá fora. Enquanto degustamos o farto pequeno-almoço continental, a chuva transforma-se em flocos de neve. Preparados para sair, o trajeto da porta de casa para o carro é de apenas dois passos, o suficiente para sentirmos o frio que nos aguarda. O carro ainda leva algum tempo a aquecer enquanto a neve vai cobrindo o para-brisas para nosso gáudio. Nunca a conjugação para-brisas fez tanto sentido.
O plano para o dia é irmos visitar alguns locais nos arredores de Liverpool que fazem parte da história dos Beatles. Começamos pela vila de Woolton onde moravam Paul McCartney e John Lennon.
As casas de família onde ambos habitaram durante a sua infância são hoje propriedade da National Trust, uma instituição de conservação do Reino Unido que cuida de propriedades históricas e zonas rurais de excelência. Para visitar as casas é necessário fazer uma marcação com antecedência. Do exterior são casas absolutamente ordinárias. Não fosse a placa informativa do National Trust, nunca diríamos que estamos perante um marco histórico.
Na mesma vila fica a igreja de São Pedro, uma igreja Anglicana que também está relacionada com a história do grupo. Trata-se de uma igreja simples, rodeada por um jardim com um cemitério, bem ao estilo inglês. À hora a que chegamos está a decorrer a missa e a igreja está bem composta. Enquanto ficamos de pé junto à porta de entrada, um senhor vem ter connosco e convida-nos para sentar. Dizemos que não vamos ficar muito tempo, por isso poupamos a maçada. Como referem no seu website, foi nesta igreja que decorreu a reunião mais importante da história da música rock, pois foi aqui que John Lennon e Paul McCartney se conheceram. O primeiro frequentava a igreja com regularidade e tinha um grupo musical, os The Quarrymen. Na noite de 6 de julho de 1957, antes de uma atuação na igreja, o grupo foi apresentado ao jovem Paul McCartney. Impressionados com as suas habilidades musicais, os membros do grupo convidaram-no para fazer parte do mesmo, convite ao qual ele acedeu passadas duas semanas. A partir dai a história tomou o seu rumo.
É também no cemitério da igreja de São Pedro que está a campa de Eleanor Rigby e de George Toogood Smith, o tio de John Lennon. Para além da relação familiar deste último, a sua importância na história dos Beatles dá-se pelo facto de que foi ele e a esposa que criaram o pequeno John após a separação dos seus pais, tinha este 5 anos de idade. Foi o tio que lhe comprou o seu primeiro instrumento musical, uma harmónica.
Em seguida passamos em Strawberry Field, o famoso campo onde em tempos esteve instalado um orfanato. John Lennon vivia aqui perto e vinha para qui brincar muitas vezes. Hoje o campo está fechado com os famosos portões vermelhos (estes já são uma réplica. Os originais estão no museu, como referido anteriormente) e vários stencils nos muros e pinturas de rua. Destaca-se o stencil com fundo vermelho que identifica o campo. Espreitamos para dentro, mas pouco se vê. Precisamente na altura que estamos a tentar ver o campo, eis que chega um autocarro turístico que para mesmo à nossa frente. As “paletes” de turistas apressam-se a sair para conseguirem tirar a foto da praxe. Acabou-se a contemplação para nós. Foi preciso ter sorte! Esta é uma das paragens que fazem parte dos vários circuitos turísticos oferecidos pelos operadores da cidade. No fundo nós também andamos a fazer um circuito pela história dos Beatles, mas pelos nossos meios e ao nosso gosto. O que é curioso é que com o valor de um bilhete para uma pessoa num qualquer circuito turístico, nós alugamos um carro durante três dias e andarmos à nossa vontade.
Não muito longe daqui fica a Penny Lane, uma rua que ficaria para sempre conhecida graças ao título de mais um dos êxitos dos Beatles. O barbeiro e a paragem de autocarros que fazem parte da letra da música ainda lá estão. O “shelter in the middle of the roundabout” onde John Lennon apanhava o autocarro ainda lá está no mesmo local. Hoje com uma configuração ligeiramente diferente daquela que surge no videoclip da música. No fundo trata-se de uma rua completamente banal às portas de Liverpool, junto a uma das principais artérias de acesso ao centro da cidade. Não tem nada de extraordinário, simplesmente gente comum que por aqui passa no dia-a-dia. Talvez fosse exatamente esse o propósito da música, um retrato genuíno do quotidiano dessa gente.
Deixamos a Penny Lane, não no típico autocarro de dois andares como fazia John Lennon, mas no nosso carro. Vamos a dois Pubs que eram frequentados pelo grupo. O primeiro é o Ye Cracke, onde John Lennon costumava parar nas suas idas à cidade. Dizem que era o seu Pub favorito. O Pub fica num edifício velho e sem qualquer interesse, numa rua muito estreita onde é impossível de estacionar. O tempo está horrível com muita chuva e vento forte e não nos convida a sair. Seguimos viagem para o próximo que é o Jacaranda. Aqui já se consegue estacionar e a rua é mais interessante que a anterior. No interior, nas paredes por cima das mesas veem-se vários posters de imagens dos Beatles. Uma jukebox alegremente iluminada anima a sala. No primeiro andar vendem-se discos de vinil, clássicos e contemporâneos. Aqui as mesas têm um gira-discos onde os clientes podem ouvir música enquanto tomam algo.
A peça mais interessante do Pub é uma cabine de gravação de nome Voice-O-Graph, de 1948. Este equipamento permitia aos clientes fazerem as suas próprias gravações diretamente em discos de vinil. Hoje já não está a funcionar, pois requer alguma manutenção, mas ainda não apareceu ninguém que saiba do assunto. Descemos para a cave passando pelo mural que foi pintado originalmente pelos Beatles. Conta-se que eles tiveram de pagar com este trabalho para poderem tocar aqui. É um ambiente muito descontraído e o staff é bastante simpático. Já estão habituados a estas visitas de curiosos, que em vez de virem beber álcool, vem beber um pouco da história do Rock&Roll. Enquanto preparam a sala para uma festa, dizem-nos orgulhosamente que os Beatles tocaram neste palco. O Jacaranda é um dos espaços onde os Beatles realizaram as suas primeiras atuações nos anos 60, e onde começaram a sua carreira profissional com o manager Allan Williams, então proprietário deste Pub. Numa placa à entrada lê-se que foi uma peça chave no lançamento do sucesso futuro da banda.
Deixamos os Beatles por um momento e vamos visitar outra das principais atrações da cidade: a catedral de Liverpool. É um edifício enorme e só para entrarmos no recinto temos de dar uma grande volta de carro pelo monte de St. James. A catedral é a sede da diocese de Liverpool e tem 189 metros de comprimento exterior, o que faz dela a catedral mais comprida do mundo (a única igreja com mais comprimento é a basílica de S. Pedro no Vaticano, mas essa não é uma catedral). Em termos de volume total, fica em quinto lugar entre as maiores do mundo. O campanário, com 100.8 metros de altura, é um dos maiores e mais altos do mundo, e alberga o sino mais pesado do Reino Unido, com 16.8 toneladas. No interior os vitrais deixariam um efeito estupendo, não fosse a falta de sol no exterior. O grande altar é uma das seções mais visitadas. Enquanto fazemos a visita, um grupo coral ensaia vários temas ao estilo gregoriano. No transepto de Derby está uma instalação em madeira chamada “Outraged Christ”. Trata-se de uma obra do artista Charles Lutyens em madeira, aço e ferro que apresenta uma imagem pouco usual da crucificação. A escultura retrata um Cristo musculado e com ar zangado, parecendo que vai saltar da cruz. Continuamos o passeio pela catedral e descobrimos algumas das suas capelas mais resguardadas. No interior ainda há um restaurante com vista para os jardins que serve comida caseira com um toque da hospitalidade celestial. Para terminar não podíamos deixar de passar pela loja de souvenirs que também tem um café bar.
De volta ao exterior o vento está terrível. Não hã guarda-chuva que resista. Corremos para o carro e seguimos viagem para o centro da cidade. Pelo caminho passamos pela catedral metropolitana de Liverpool. Esta é a maior catedral Católica de Inglaterra. A que visitamos antes pertencia à igreja Anglicana (ou igreja de Inglaterra). O edifício circular é um dos marcos arquitetónicos da cidade, mas o tempo está tão mau que ninguém tem vontade de sair.
No centro voltamos à Mathew Street para jantar no Flanagan’s Apple, um pub tradicional Irlandês, onde comemos o típico Fish&Ships. Em frente fica o The Grapes, outro dos pub frequentados pelo Beatles. Diz-se que vinham aqui beber umas “pint’s” entre as atuações no The Cavern que na altura não vendia álcool. Sim, parece mentira mas é como “reza” a história.
Depois do jantar regressamos a casa e ainda passamos pelas docas para vermos uma última estátua dos Beatles. É uma escultura icónica dos “Fab Four” a caminharem pelo passeio, do escultor Andrew Edwards que pesa 1,2 toneladas. Como se estivessem a dar uma volta pela cidade. Foi oferecida pelo Cavern Club e a sua instalação coincidiu com o 50º aniversário da última atuação do grupo na cidade, no Liverpool Empire Theatre. E assim como Paul, John, Ringo e George também nós vamos dar uma volta, mas por agora seguimos em direções diferentes.