Fevereiro, Março 2022
Assim que deixamos Stone Town, a paisagem urbana dá lugar à vegetação tropical. Seguimos para norte na estrada principal da ilha. Por enquanto tudo em asfalto com alguns buracos pelo meio, mas nada que mereça grande preocupação. A viagem faz-se de forma tranquila, mas sempre dentro dos limites de velocidade, pois aqui há sempre muita coisa a acontecer junto à estrada. São os táxis que param constantemente para apanhar mais passageiros, as bicicletas e motas que entram na via à vontade, e pessoas a caminhar nas bermas. Há sempre alguém a caminhar na berma na estrada. Isso foi algo que já tinha constatado há uns anos atrás, numa viagem pela África do Sul. No meio de “nenhures” havia sempre alguém caminhando. No fundo, em toda a parte, há sempre um rumo a seguir. Ainda que por vezes não saibamos o ponto de chegada, todos nós caminhamos para algum lado.
Quando chegamos a Nungwi o asfalto termina. Saímos da estrada principal para ir para o hotel e passamos para um caminho empoeirado com pedras e buracos à escolha. Nada que afronte o nosso RAV4. A partir daqui é sempre assim.
Fazemos o check-in no hotel onde ficamos alojados numa espécie de bungalow muito rústico, mas em alvenaria. O proprietário dá-nos umas dicas do que há para ver e algumas recomendações para comer. Diz-nos que a melhor praia é aqui perto do hotel, pois mais próximo de Nungwi há sempre barcos a passar. Quase não se consegue tomar banho, tal é a azafama de barcos carregados de turistas. Esta zona é a mais turística da ilha, e é aqui que ficam os resorts mais conhecidos.
Seguimos a recomendação e deixamos o carro junto ao restaurante Coccobello. Dai seguimos pelo pequeno caminho até à praia, que é num fundo um corredor que termina no areal. À entrada da praia tem montes de barraquinhas de artesanato e bugigangas que eles chamam de mercado tradicional massai. Tretas para ludibriar turistas, pois os massais são um grupo étnico africano seminómada que vive no Quênia e no norte da Tanzânia, mas não em Zanzibar. São um povo que vive essencialmente da pastorícia. Ora aqui não há nem gado, nem pastagem, a não ser quando surgem alguns fluxos turísticos em massa que mais se assemelham a “carneirada”. Mas para esses talvez estes massai pouco originais sirvam bem o propósito! Fica então a dica, que partilho também com relatos de outros viajantes, de que as visitas às aldeias Massai em Zanzibar são verdadeiros embustes turísticos, que em nada beneficia a cultura desse povo. São apenas pontos de venda montados pela ilha para agradar turistas pouco informados.
Apesar da ressalva sobre os massai, o mercadinho tem muita variedade de artesanato tradicional interessante e muitas telas (pinturas) com motivos locais. De massai só tem mesmo o nome.
As praias de Nungwi tem os areais mais brancos e imaculados da ilha. Aqui sim, já vale a pena fazer praia à séria. A água segue cristalina e a uma temperatura pouco refrescante, mas que convida a permanecer dentro de água. Damos uma série de mergulhos junto a uma zona de rochas pitoresca. Na praia toda a gente passeia, locais, turistas, crianças a brincar, e até vários falsos massai! Sim, é frequente ver rapazes novos a caminhar com fatiotas típicas massai e com paus na mão, como que a imitar as tradicionais lanças dos massai. Mas aqui só se for para caçar turistas, porque não há muito mais para caçar.
Caminhamos pela praia para sul, passando por vários resorts, e mergulhando aqui e ali. Pelo caminho passamos por várias “galeria de arte” acabadas de montar. Algumas ainda estão a organizar as telas em exposição no areal e nas rochas da praia. É uma das zonas mais bonitas de todo o percurso! Junto á água exibem-se imensas telas de motivos locais, que se multiplicam numa amálgama colorida de encher o olho. Outros montam na areia exposições de esculturas africanas impecavelmente alinhadas no areal. As rochas são utilizadas como expositores onde se penduram colares, chapéus, vestidos, entre outros. Vale tudo para piscar o olho aos turistas. Mas aqui, convenhamos, capricham na criatividade.
Claro que não podíamos passar por tamanha tentação sem “fraquejar”, e acabar por dar algum apoio aos artistas locais. Depois de regatear um pouco, acabamos por comprar uma tela com elefantes, numa reprodução longínqua destes seres magníficos que em tempos habitaram a ilha. A ganância pelo marfim, há muito que extinguiu a espécie no arquipélago.
Seguimos pelo areal até à praia de Kendwa, mais a sul. Aqui a beleza natural dá lugar a um amontoado de resorts onde os turistas se espalham por espreguiçadeiras pelo areal fora. Não tem qualquer interesse e por isso regressamos novamente para Nungwi.
No regresso, já mais pela fresca, encontramos muitos locais a correr e a fazer exercício físico ao longo da praia. São essencialmente rapazes novos, que ao que parece, gostam de estar em forma!
Á noite seguimos o concelho do nosso hotel e vamos jantar ao Baraka Beach, um resort que tem um restaurante com uma esplanada no areal da praia. A especialidade é peixe grelhado e disseram-nos para ir cedo, porque depois de uma certa hora começa a fazer fila. Chegamos cedinho e sentamos na mesa mais próxima da água. Para jantar escolhemos atum grelhado acompanhado de uns “moktails” sem álcool fantásticos. Durante a refeição ainda assistimos a várias performances de grupos de artistas acrobatas espontâneos, que se exibem para entretimento dos turistas. Agora percebo, porque vimos tantos rapazes a fazer exercícios ao final da tarde.
No dia seguinte, deixamos o hotel já a meio da manhã e seguimos para o centro de Nungwi. Estacionamos o carro e vamos em direção à praia para começar o passeio. Aproveitamos a maré baixa e caminhamos até à ponta mais a norte da ilha de Zanzibar. O mar de água turquesa salpicada de verde das algas, e pontilhada com os típicos barcos de madeira são um regalo à vista sem fim. Passamos pelo farol e avançamos mar adentro até ficarmos com água pela cintura. Damos uns mergulhos à vez, pois alguém tem de ficar a segurar as mochilas. Regressados ao areal subimos junto ao farol. Esta é uma área militar, por isso temos de contornar por detrás.
A seguir, vamos visitar um aquário de proteção de tartarugas marinhas. No interior o rapaz que nos guia durante a visita explica-nos as várias espécies de tartarugas que vamos vendo. Num primeiro tanque estão as mais pequenas, que requerem especial cuidado. Depois de crescidas passam para um lago natural que tem ligação à água do mar onde podem permanecer até aos 25 anos de idade. Só após atingirem essa idade são libertas no mar. Trata-se pois de um evento bastante esporádico, que por sinal decorreu no dia 20 de fevereiro passado. Diz-nos que até esse dia, o lago tinha cerca de 100 tartarugas. Agora não passam de duas dezenas e quem sabe quando será a vez de estas seguirem o curso da natureza.
Depois da introdução, fomos alimentar as tartarugas mais crescidas no lago. A nossa chegada com as algas gerou logo grande alvoroço nas criaturas. Parece que o lema local “Pole Pole” não se aplica aos amimais em Zanzibar. Após a refeição, os mais corajosos podem nadar no lago com as tartarugas. Dizem-nos para entrar lentamente e para não termos receio que elas não fazem mal. Sou o primeiro a entrar enquanto a Marisa fica a ver cá fora se eu sobrevivo no lago das tartarugas. Assim que entro no lago, sou imediatamente rodeado de cabeças à tona de água, à procura de mais comida. Peço à Marisa para as alimentar do outro lado, para ver se consigo entrar. Uma vez dentro de água, fico ali à mercê das gentis criaturas. Ainda levo umas mordidelas de algumas mais distraídas e vários encontrões com as barbatanas. Eu lá as vou encaminhando noutra direção, empurrando as suas carapaças. Depois de confirmado o meu estado de saúde, foi a vez da Marisa e o filme repetiu-se.
No aquário tem ainda uma seção com carcaças de tartarugas, de esqueletos de golfinhos que deram à costa mortos durante um tsunami que houve na ilha em 2006. Descobriu-se mais tarde que tinham sido envenenados por uma espécie de peixe-balão venenoso que se desconhecia nestas águas. Tem também um esqueleto real de uma baleia-jubarte que provavelmente migrou da costa da África do Sul e aqui deu à costa. As tartarugas são simpáticas e claro que neste caso estão mais do que habituadas a que estranhos as venham importunar. Como moeda de troca, damos-lhe dose extra de comida, e assim acabamos por selar um acordo de cavalheiros. Só espero que um dia, também estas simpáticas amigas possam encontrar melhor poiso nas águas quentes do índico.
Perto do aquário fica aquele que pode bem ser um dos restaurantes com a vista mais bonita da ilha. O Aluna Beach fica mesmo na pontinha mais a norte da ilha de Zanzibar e tem uma esplanada com uma vista panorâmica de cortar a respiração. No nosso passeio pela praia tínhamos passado por baixo da esplanada. A maré estava vazia por isso nem nos apercebemos bem do que estávamos agora a ver. Quando a maré sobe, a água vem até junto da esplanada e por isso estamos sentados em cima da água a ver o mar índico no seu infinito. Tomamos um refresco e apreciamos a vista por alguns momentos. Esta é uma daquelas que certamente vai ficar registada durante algum tempo nas nossas memórias.
Seguimos a pé desta vez pelo centro da aldeia até ao carro. Neste percurso, pouco habitual para os turistas, é que nos damos conta das reais condições de vida desta gente! É que do lado da praia, tudo é belo e paradisíaco. Deste lado, parece que entramos numa máquina espaço/temporal, que nos transporta para um mundo radicalmente oposto, e que parece que está atrasado no tempo décadas, se não mesmo séculos.
As casas são blocos de cimento com telhados de zinco ou de folha de palma. Também se vêm algumas de paus de madeira, que melhores não são do que as barraquinhas que encontramos perto das praias. No lugar das janelas, um buraco vazio, ou chapas de zinco. Aliás, janelas (de vidro) é coisa rara, mas também não há necessidade. Até mesmo num hotel onde ficamos, só tinha rede no espaço das janelas. As ruas de terra batida, buracos por todo lado. A pobreza é generalizada, mas o que custa mesmo, não é tanto a pobreza, mas sim as assimetrias com que somos confrontados!
As crianças saem da escola e olham para nós com estranheza! “O que andam estes brancos a fazer aqui pela nossa aldeia!?” devem pensar. O nosso lugar não é ali. Outros mais destemidos metem-se connosco gritando “Jambo”, que em suaíli significa “Olá!”. Respondemos na mesma língua e elas correm com vergonha. Apesar de tudo, não vemos indícios de fome. As crianças que vamos encontrando pelo caminho tem um aspeto saudável e nota-se que são felizes. Em geral as pessoas são simpáticas e orgulhosas das suas raízes.
O banco mundial define como estrema pobreza quem vive com menos de 1,90 USD por dia, e estimou que em 2021, 10% da população mundial vivia nestas condições. Não faço ideia quais sejam os rendimentos desta gente, mas para nós os privilegiados que fazemos parte dos 90%, é importante vermos como se vive em outras partes do mundo, como aqui em Zanzibar. Oxalá nos pudesse ajudar a mudar um pouco o nosso paradigma de vida consumista, e de constante azáfama sempre à procura de mais e melhor, quando o mais importante é o aqui e o agora.
Deixamos Nungwi e vamos partir para a costa oriental de Zanzibar, uma parte menos turística, com um ambiente ainda mais “Pole Pole”.